Comércio é solução para estrutura econômica frágil
- André Marinho
- 21 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Fortalecimento de instituições comunitárias aquece a economia local

Lojas de roupas, sapatos e joias dividem espaço com consultórios dentários, petshops e lanchonetes. Pessoas carregam sacolas e comparam os preços dos vários estabelecimentos comerciais, que dispõem de portas automáticas, sensores de segurança e métodos de pagamento variados.
A descrição parece a de um shopping a céu aberto, mas, na verdade, trata-se da Avenida Edgar Werneck, que corta a Cidade de Deus de ponta a ponta. Nos últimos anos, a consolidação de instituições comunitárias e a contribuição de organizações filantrópicas ajudaram no aquecimento do ambiente de negócios da comunidade.
“Antes, só havia pequenas biroscas que vendiam arroz, feijão, água sanitária, entre outros. Hoje, já há um comércio de roupas, sapatos e até joias, com uma gama de produtos que só era oferecida em shoppings”, conta Iara Oliveira, moradora há 51 anos.
O movimento ilustra a capacidade dos moradores da região em prosperar trabalhando por conta própria. Uma pesquisa conduzida pela Sebrae, em 2012, indicou que o grupo de microempreendedores da Cidade de Deus se destaca como um dos que mais tiveram sucesso entre os locais ocupados pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Em 2003, foi constituído um comitê comunitário responsável por elaborar o primeiro Plano de Desenvolvimento de Cidade de Deus. No documento, foram estabelecidas metas e diretrizes para o horizonte de cinco anos, de acordo com as demandas dos moradores em sete áreas (Emprego e Renda; Educação; Saúde; Meio Ambiente; Promoção Social; Cultura e esporte).
Para coordenar os projetos que seriam implementados nos anos seguintes, em 2006, o comitê fundou a Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Econômico. Segundo Iara, que integra a iniciativa, a entidade atua na fomentação da economia solidária. “Dizem que esse é um conceito novo, mas, na verdade, a favela sempre teve forte economia solidária, só não tinha esse nome. Nós sempre nos organizamos como grupo produtivo de geração de trabalho e renda ”, afirma.
Iara, no entanto, rejeita a ideia de que a população mais pobre dispõe de uma “visão empreendedora” diferenciada. Para ela, as disparidades do sistema financeiro forçaram a descoberta de alternativas para a sobrevivência. “As pessoas costumam dizer que os favelados são criativos e inventivos. Não é nada disso. Nós só aprendemos que cabe a nós fazer as coisas acontecerem, porque o poder público não está preocupado com a transformação e o desenvolvimento do local”, argumenta.
Parcerias com instituições de fora
Como resultado da expansão do comércio local, emergiu uma renovada demanda por capacitação, que chamou a atenção de empresas e organizações filantrópicas. A Lamsa, concessionária que administra a Linha Amarela, além de contribuir na administração da Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Econômico, financia e dirige uma série de iniciativas no bairro. Um deles, o Ecoredes, promove a gestão ambientalmente sustentável de resíduos e oferece capacitação profissional aos catadores.
Em outra frente, o Banco da Providência, da Arquidiciose do Rio de Janeiro, também atua para a mitigação da pobreza através das Agências das Famílias. Em parceria com ONGs locais, a entidade mantém duas unidades, onde são oferecidos cursos de formações gerais para o mercado de trabalho.
Na segunda etapa do projeto, os participantes são encaminhados para cursos profissionalizante de habilidades específicas, em 15 áreas, como beleza, construção civil e gastronomia. Aqueles que ultrapassam essa fase são divididos em dois grupos: Agência de Emprego, que faz treinamentos para o acesso ao mercado de trabalho e Agência de Empreendedorismo, que desenvolve conhecimentos sobre a gestão de negócios próprios.
No curso de empreendedorismo, os alunos aprendem, em oito aulas, noções de gestão financeira, divulgação de marcas, entre outras questões, através de uma metodologia desenvolvida em parceria com o instituto Aliança Empreendedora. Para facilitar a frequência, eles recebem dinheiro para passagem e lanches.
Após o fim do curso, os participantes abrem seus negócios e, por seis meses, são acompanhados pelo projeto. Eles comunicam o estado de suas empresas, os investimentos realizados e as demonstrações financeiras. Alguns deles recebem apoio ferramental.
A cozinheira Cristiane Ribeiro, de 42 anos, moradora da Cidade de Deus, foi uma das empresárias que mudou de vida após conhecer o Banco da Providência. Ela abriu uma confeitaria e, hoje, já estuda até contratar um funcionário. “Sempre entendi que, ao empreender, você fica mais livre. O curso me ajudou muito nesse sentido. Agora, faço anotações de tudo o que vendo e a clientela cresceu”, comemora.
Mas, às vezes, os planos de aumentar a renda através do negócio próprio esbarram em obstáculos. De acordo com a coordenadora da Agência de Empreendedorismo, Natalie Hanna, que ministra o curso, a violência segue sendo a principal dificuldade na comunidade. “Já tive que cancelar várias aulas por causa de tiroteios. As pessoas perdem o direito de ir e vir. Uma cabelereira, por exemplo, chegou a abrir um salão, que era o seu sonho, mas teve que fechar, depois dele ter sido atingido por várias balas perdidas”, conta.
Banco próprio
Em muitas dessas empresas, as notas do real encontraram a concorrência de uma nova moeda: a CDD. Mas elas não estão disponíveis nas agências bancárias tradicionais, como a moeda nacional. A CDD é cunhada exclusivamente pelo Banco Comunitário da Cidade de Deus, que surgiu no âmbito do plano de desenvolvimento.

CDD: moeda exclusiva da comunidade (Crédito: Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Econômico)
Fundado em 2011 pela agência econômica, a instituição teve aporte inicial do Instituto Banco Palmas, que forneceu a estrutura metodológica do projeto. “Nós trabalhamos muito com a orientação dos empresários e das pessoas endividadas. Além disso, firmamos parceria com a Sebrae para ajudar na formalização dos pequenos negócios”, explica Lizete Martins, que participou da concepção do programa.
No início, o banco foi alimentado com recursos da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego. Na cerimônia de inauguração, uma comitiva do governo municipal, liderada pelo então prefeito Eduardo Paes, ofereceu apoio por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico Solidário (SEDES).
Lizete, contudo, garante que a prefeitura não contribuiu com um centavo. Este ano, a gestão do prefeito Marcelo Crivella extinguiu a SEDES, que foi incorporada a Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Emprego e Inovação. Procurada, a pasta não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Segundo Lizete, a CDD chegou a ser aceita em 140 estabelecimentos, que concediam descontos em transações feitas com a moeda. Ela não sabe precisar o número atual, mas afirma que a redução foi grande. “A circulação é bem menor do que já foi. Por isso, estamos reavaliando o banco e queremos dar a ele uma nova cara”, relata.
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