comunidade reflete o fracasso das políticas urbanas cariocas:
Cinco décadas. Desde que os primeiros modadores começaram a povoar a Cidade de Deus, na década 60, a comunidade se tornou marca do deslocamento do pobre para a periferia e todo os efeitos colaterais que isso pode causar: violência, graves problemas de infraestrutura. Virou filme, exportou a imagem de violência mundo afora.
Segundo o professor Luiz César Queiroz, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ, o bairro é o reflexo de um processo de transformação da dinâmica espacial do Rio de Janeiro. “Antes, o espaço do Rio era marcado pela proximidade de entre grupos sociais diferentes. As favelas estavam nas áreas centrais, onde vivem os grupos sociais dominantes”, explica.
Durante a primeira metade do século XX, quando o Rio ainda era a capital federal, uma sucessão de reformas urbanísticas extinguiu os cortiços da cidade e expulsou as classes mais pobres para o alto dos morros. Como resultado, nos anos 50, a Zonal Sul tinha um arranjo paradoxal: abrigava os edifícios mais luxuosos do país e as favelas mais miseráveis.
A partir dos anos 60, no entanto, esse quadro começa a mudar. Com a construção de Brasília, o Rio foi transformado em Estado da Guanabara e passou a ser governado por Carlos Lacerda, que inicia uma política de remoção de comunidades das áreas mais valorizadas. “Iniciou-se uma dinâmica de atualização do espaço social, com objetivo de desmanchar essa gramática de proximidade entre grupos distintos”, diz Queiroz.
No âmbito desse processo, o governo construiu diversos conjuntos habitacionais no subúrbio para abrigar a população removida. Um deles, na baixada de Jacarepaguá, ficaria mundialmente famoso décadas depois: a Cidade de Deus.
“Houve um deslocamento compulsório de grupos sociais inteiros. O resultado foi a deslocalização social daqueles grupos, porque, antes, eles tinham organização própria e redes de relações que tiveram que ser totalmente reorganizadas”, conta o professor.
Legado de pobreza e violência
De acordo com o planejamento inicial, foram construídas cinco mil casa, que abrigaria moradores de 63 favelas destruídas por inteiro ou parcialmente. Contudo, com o abandono da administração pública, a região registrou crescimento desgovernado e ultrapassou os limites previstos em papel.
A explosão do contingente populacional, entretanto, não foi acompanhada pela evolução das condições econômicas. Hoje, por todos os cantos da comunidade, é possível detectar as consequências da ausência do Estado.
Às margens do poluído Rio Grande, barracos feitos de barro e madeira são construídos ao lado de valas de esgoto e depósitos de lixo à céu aberto. Nas áreas localizadas nos extremos do perímetro da favela, ruelas estreitas e caminhos não asfaltados fazem do local uma réplica das mais isoladas zonas rurais do país.
O cenário indica a dimensão do problema: trata-se de uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro. Com cerca de 42 mil habitantes - segundo a prefeitura -, a Cidade de Deus tem o 14° menor Índice de Desenvolvimento Humano entre as 126 regiões da cidade.
De acordo com dados do Instituto Pereira Passos, extraídos do site RioSocial , moradores de 7,3% dos 13 mil domicílios da região vivem em situação de extrema pobreza, que corresponde ao rendimento mensal de até 1/4 do salário mínimo. O número é mais de duas vezes maior que o registrado na capital fluminense, que tem 3,3% das residências em condições semelhantes. A discrepância é ainda mais aparente quando se compara com Jacarepaguá, no entorno da comunidade, cujo mesmo índice é de apenas 2,5%.
O levantamento mostrou também que 64% das famílias locais têm rendimento mensal per capta inferior a um salário mínimo, que corresponde a quase o dobro dos 37% identificados no Rio. Em Jacarepaguá, o percentual de lares nessa faixa de renda é ainda menor: 34%.
Ainda mais grave que a fragilidade econômica, no entanto, um outro fator demonstra a negligência das autoridades: a violência. Quando, em 2002, o filme “Cidade de Deus” tornou-se uma das produções mais bem sucedidas do bem-sucedidas do cinema brasileira, expôs para o mundo o poder do tráfico de drogas naquela região.
O longa apresenta o surgimento e a ascensão do crime organizado, que, diante do esquecimento da administração pública, criou um sistema de controle próprio e transformou a favela num dos lugares mais perigosos do Brasil. No final da década de 90, tiroteios limitavam o deslocamento da população, pessoas inocentes eram assassinadas e não havia qualquer sinal de atuação estatal.
Em 2009, a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) chegou a atenuar o quadro de violência. De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, nos anos seguintes à implementação da UPP, o número de homicídios na área da 32° DP (responsável pela comunidade) despencou quase 80%: passou de 112, no primeiro semestre de 2008, para 45, no mesmo período 2012.
No entanto, com a grave recessão econômica que atingiu o Estado, o projeto de pacificação entrou em decadência. De lá para cá, o número de homicídios voltou a crescer e, em 2016, chegou a 99.
Para Luiz Cesar Queiróz, a reversão desse panorama demanda uma percepção diferente do território. “É preciso reconstruir o habitar urbano, no sentido mais amplo da expressão. Deve-se entende-lo como campo de ação sócio-urbanística para integrar a população na dinâmica da cidade”, avalia.