Desigualdade social e descaso do poder público
- Carolina Ernst e Giuliana James
- 22 de nov. de 2017
- 4 min de leitura
Com 38 mil habitantes, comunidade tem um dos menores índices de desenvolvimento humano da capital carioca

Cidade de Deus: complexo habitacional, bairro, comunidade. Por muito tempo considerada uma das regiões mais perigosas do Rio de Janeiro, a comunidade da Cidade Deus, que fica em Jacarepaguá, é dona de uma grandeza, autossuficiência e quantidade populacional que a faz ser considerada um complexo habitacional ou um bairro. A população gira em torno de 38 mil habitantes e possui um dos menores índices de desenvolvimento humanos da capital carioca.
No século XVI, a região era habitada pelos índios tamoios e depois passou a pertencer à sesmaria de Martim Correia de Sá, sendo produtora de cana-de-açúcar e café. A partir de 1960, recebeu pessoas removidas de outras favelas do centro do Rio pelo então governador do Estado, Carlos Lacerda, e foram construídos no local conjuntos habitacionais. Nesse contexto, surge a comunidade que foi se desenvolvendo após a criação de associações de moradores, agremiações e grupos de arte.

O historiador Fabio Barros, da Universidade Estácio de Sá, explica que o crescimento desordenado ocorrido ali no terreno às margens do rio Grande é um dos principais motivos para o baixo índice de desenvolvimento da região: "Em 1981, a Cidade de Deus passou a se consolidar oficialmente como bairro, mas teve uma formação desordenada e sem atenção do governo. Ou seja, os hospitais e escolas foram não sendo suficiente para todos – conta Fabio.
Atualmente, segundo o Instituto Pereira Passos, há na comunidade uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e cerca de 15 escolas".
- O filme Cidade de Deus, de 2002, deu voz ao bairro e chamou a atenção das pessoas para a discriminação e violência. Dessa forma, em 2003, a comunidade começou a andar para frente no que tange desenvolvimento. Novas organizações foram formadas, inclusive o Comitê Comunitário da Cidade de Deus e em 2009, recebeu a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Chegou até mesmo receber visitas do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama – explica Fabio.

Pelas ruelas que se inspiram no nome do bairro, pois recebem nomes da Bíblia, como Rua Israel, Rua Rubens e Rua Jessé, a moradora Rosalina Brito percorre o caminho até sua casa, passando pelo centro de Artes onde trabalha. Ela mora na Cidade de Deus desde 1966, momento que marcou o início do êxodo das comunidades da Zona Sul para lá, e lembra exatamente do dia em que se mudou para o embrião do que apenas em 1968 seria reconhecido como Cidade de Deus. Ex-dependente de drogas, Rosalina condena o descaso da gestão pública com o bairro desde o momento em que foi criado.

O filme “Cidade de Deus”, para Rosalina, apresenta uma ideia um tanto romantizada do início do que viria a ser um complexo habitacional, e não uma comunidade ou favela. A cena inicial do filme, de uma paisagem árida e desértica, não se encaixa na sua memória de chegada no local. Transferidos de Inhaúma por conta de grandes enchentes em 1966, Rosalina e sua família esperaram por um mês em uma escola pública por uma casa na Cidade de Deus. A chegada de Rosalina ao novo “bairro” foi “marcada pela decepção”. Contrária ao cenário do filme, a Cidade de Deus era um “pântano”, úmido e “com grandes poças no chão de terra batida”. Além da moradia que, contrária à propaganda da época, tinha que ser paga pelos transferidos.
Os relatos de seus primeiros anos na Cidade de Deus contradizem o que é dito sobre a comunidade nos livros de História do Rio de Janeiro - quando é dito. Rosalina relembra anos de isolamento no novo complexo habitacional. Sem escolas, comércio ou acesso a meios de transporte, suas lembranças são marcadas pelo sofrimento e esforço de seu pai, que voltava para casa apenas uma vez por semana para entregar o dinheiro ganho no trabalho, no distante Centro da cidade.
Mais tarde, nos anos 70 e 80, Rosalina acompanhou a chegada do crime e do tráfico de drogas à comunidade. Para o professor do departamento de Geografia da PUC-Rio Marcelo Alonso, o tráfico de drogas chegou ao Rio de Janeiro junto ao crescimento do consumo de cocaína na América do Norte, culminando na produção em massa de narcóticos em toda a América Latina. Na “Cidade de Ninguém”, como Rosalina apelida o bairro, não foi diferente. Com a intensificação do tráfico alinhado ao crescimento acelerado e exagerado da Cidade de Deus, o bairro fugiu do controle do Estado.
Rosalina lamenta ter passado por momentos de vício pesado em drogas atrelado ao “desgosto” e à indignação com o poder público. Ela se questiona até hoje se a continuidade do governo de Lacerda teria evitado o abandono da Cidade de Deus, que a troca de mandatos para o governador Negrão Lima acabou deixando na comunidade.
Hoje, lamenta que muitos que tenham se mudado para a comunidade não tenham chegado a viver tanto quanto ela.
- Aqui quase não existe ficar velho - ressalta com tristeza. Seja pelo tráfico, pelo uso de drogas, descaso com a saúde, pela violência da polícia, a morte é uma figura presente na Cidade de Deus.
Rosalina conta sua história com coragem e “não se cala”, assim como toda a comunidade, que parece não se calar e não desistir da busca por um futuro melhor, mesmo com todo o descaso do governo para com a região.
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